O Inimigo
Ainda faltava uma semana para a Copa Brasil /Panamerican Cup de Triathlon, mas já sentia um frio na barriga toda vez que pensava na prova. Sensação essa, certamente, motivada por um conjunto de sentimentos bons e ruins.
Um pouco de ansiedade positiva pela grande festa e pelo encontro com os amigos (tanto os companheiros de treinos quanto os atletas que vinham de outras cidades). Ansiedade também pelo desejo de que tudo desse certo com a organização do evento, que nenhum acidente ocorresse no ciclismo e de que todos os atletas de fora do estado tivessem uma boa impressão da prova e da cidade. Por outro lado, um certo incômodo, pela certeza do encontro com uma pessoa em especial.
Eu não costumo alimentar o sentimento de competitividade com outras pessoas. Normalmente, conduzo isso de uma forma positiva, criando apenas referências para com outros atletas, potencializando o meu desejo de melhorar sempre. Mas, nesse caso, é diferente. É um sentimento incomum, talvez errado, agressivo, de querer “passar por cima” mesmo!
Não sei exatamente quando isso começou. Sei apenas que nesse embate, cruzei a linha de chegada à sua frente por mais vezes nas competições. E se tantas vezes venci, sinceramente, não sei por que ainda alimento esse sentimento. Afinal, eu deveria estar com “créditos”, pelo saldo positivo no número de “vitórias”.
Nós até treinávamos juntos no passado. Inúmeros foram os treinos longos de ciclismo ao seu lado, regados de boas conversas e momentos de descontração. Mas, em algum momento, isso mudou ou se perdeu. Nos últimos meses, em especial nas últimas semanas, cruzar com ele em um treino era motivo para desviar de rota, tentando evitar qualquer tipo de contato.
A semana passou voando. Realizei os últimos treinos mantendo certa intensidade e procurando dormir o máximo possível, para tentar recarrega as energias. A sexta-feira, porém, foi uma loucura. Entre compromissos no trabalho, apoio na organização do evento e ajuda para alguns atletas de fora, cheguei em casa às 22:00hs, para ainda organizar e preparar os meus equipamentos para o dia seguinte.
@Wagner Araújo
Eram 23:20hs quando consegui deitar na cama. Uma leve dor de cabeça, logo acima dos olhos, expressava sinais de stress e cansaço. Nesse quesito, o meu oponente talvez estivesse em vantagem. Quem sabe ele não tirou uma tarde de folga no trabalho para descansar? Quem sabe ele já não estava dormindo há pelo menos uma hora? Quem sabe!
No dia seguinte, cheguei ao local da prova cumprimentando diversos amigos. Não o encontrei na área de transição, muito menos no aquecimento da natação. Por alguns minutos, cheguei a pensar que ele não faria a prova. Talvez, ele não tenha acordado ou até poderia estar doente. Com essa possibilidade, um estranho alívio tomou conta de mim. Alguns segundos depois e essa deliciosa sensação foi interrompida com a verbalização do seu nome em uma conversa próxima.
Era ele! Estava logo atrás de mim! Parecia tranquilo, forte, descansado. Contava piadas, tinha aparência de relaxado, como se nem estivesse em uma largada de prova. Por ironia do destino, o “macaquinho” era idêntico ao meu.
Para continuar concentrado, preferi fazer de conta que nem tinha percebido sua presença. Um leve toque nas minhas costas, porém, deu início ao nosso primeiro “confronto” do dia.
– “Fala Dalton! Tudo bem? Boa prova para você… e nos vemos na linha de chegada!”
Minha reciprocidade foi imediata. Quem sabe eu até precisava disso (desse contato) para quebrar um pouco a ansiedade, limpar a mente e correr mais relaxado.
Mas os pensamentos são impulsivos e o desejo, na maior parte do tempo, irracional. Bastaram alguns segundos para voltar a pensar que, naquele dia, eu poderia perder para qualquer um, menos para ele!
Os 750 metros foram, certamente, a melhor natação da minha vida. Devo ter colocado uns 45 segundos ou mais no meu oponente. Fiz uma rápida transição, mas um pequeno erro na saída da água fez com que eu perdesse um grupo de atletas que estava 15 segundos na minha frente. Com isso, fiquei sozinho na bike, com uma bicicleta “road”, enquanto pequenos grupos se formavam atrás de mim.
Em um desses grupos, ele, certamente, estaria.
A cada retorno mantinha contato visual e cronometrava a distância. Os segundos caiam, mas ainda assim, eu conseguia manter uma velocidade média razoável.
Saí para correr 20 ou 25 segundos na frente e, apesar de “quebrado” por ter pedalado tanto tempo sozinho, conseguia fazer valer os duros treinos que antecederam a prova, mantendo um “pace” competitivo.
Ele vinha tirando 2, 5, 10 segundos. Chegamos a ficar com apenas 12 segundos de diferença no início da segunda volta. Sequer nos olhamos no último retorno, não apenas pelo cansaço, mas pela certeza do papel e dos sentimentos de cada um naquele momento. Ele estava rangendo os dentes… E eu também!
Apertei na última perna da corrida, mantive a pequena vantagem e segurei até o final. Sim! Eu venci!
Entrei na área destinada à recuperação dos atletas. Comi algumas frutas, hidratei-me. Por algum motivo, acabei não encontrando mais com ele. Confesso que o procurei! Afinal, nada melhor para o ego do que cumprimentar o “derrotado”. Mas ele, realmente, já tinha deixado o local.
Teria sido a sua frustração ou raiva maior do que o prazer em confraternizar com outros atletas? A ponto de ir embora sem deixar rastros, pistas ou sem a famosa “resenha” pós prova?
Fui para casa com um sabor de vitória. Cantarolava como uma criança regressando do recreio. Ao tocar na porta do meu apartamento, percebi que ela estava aberta. Não forçadamente, porém aberta. Os batimentos cardíacos subiram mais do que nos últimos quilômetros da prova. Entrei em silêncio pela sala, tudo parecia em ordem. Livros, porta-retratos… Tudo estava no seu devido lugar. Teria eu, ao sair pela manhã, simplesmente, esquecido a porta aberta?
Atravessei lentamente o corredor e ouvi um pequeno barulho no banheiro social.
Fiquei parado por alguns segundos. Respirei fundo! Bem devagar, voltei a caminhar pelo corredor. Abri a porta lentamente… Entrei!
Dei de cara com ele dentro da minha própria casa. Dentro do meu banheiro. Ele estava no meu espelho, refletindo a minha própria imagem. Um leve sorriso no rosto, talvez irônico, e um olhar desafiador. Alguns segundos se passaram em silêncio. A nossa respiração era, curiosamente, sincronizada e ofegante. Calmamente, falamos simultaneamente: “Até a próxima prova!”.
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