segunda-feira, 23 de novembro de 2015

A Casa Escura do Lago.

Publicada em 25 de março de 2014, "A Casa Escura do Lago" é uma metáfora com as sensações pós-prova(principalmente provas de longa distância) ou pós-temporada. 
Escrevi algumas semanas após uma prova de meio-iron... enquanto ainda me recuperava de todo o desgaste físico e mental.
Entendo que é um bom momento para essa releitura... em função, não apenas do fim da temporada de 2015... como também por ter, recentemente, completado o Ironman Florida... e, por tantos amigos, terem completado o Ironman Fortaleza, Kona... e tantos outros...
... bem vindos à Casa Escura do Lago.

A Casa Escura do Lago.
Em fevereiro deste ano, juntamente com vários amigos, completei mais uma prova de meio Ironman. Já se passaram quase 40 dias desde então. Deixamos o nosso esforço e até mais do que possamos imaginar em cada quilômetro daquele percurso.
Um amigo, cujo nome verdadeiro será preservado e iremos chamá-lo de “Pedro”, relatou fatos e sensações após a prova comuns a muitos atletas. A forma como ele vivenciou, porém, foi única e impossível de não ser compartilhada.
Após a prova, “Pedro” retornou à sua cidade. Por mais que lutasse contra, sabia que precisaria passar alguns dias naquela casa. Ele preferia voltar o mais rápido possível a treinar, usando toda a adrenalina pós-prova para se manter ativo. Mas eu sei, você sabe e ele também sabe que isso é impossível, pois descansar é preciso!
@Ivan Padovani
@Ivan Padovani
Eu, particularmente, gosto de tentar colocar a “vida em ordem”, fazendo coisas proteladas pela falta de tempo, como um conserto no carro ou simplesmente ir ao cinema. Pedro, por outro lado, já sabia o seu destino.
Ele a chama de Casa Escura do Lago. Uma pequena cabana, toda em madeira já muito envelhecida e mal tratada pela umidade da região. Ganhou o sombrio apelido quando Pedro ainda era uma criança. Nunca sofreu reformas. O passar dos anos só ajudou a reafirmar as características e o nome do local.
Pedro a descreveu como um local simples e muito rústico. Uma pequena varanda na frente com uma rede e uma cadeira de embalar. Dentro, uma pequena sala com uma mesa e dois bancos. Aliás, o segundo banco seria desnecessário, pois ele nunca recebe ninguém naquela casa. Um banheiro muito simples, sem espelhos, apenas um cano para a água fria, cujo fluxo é controlado por um pedaço de madeira. O quarto acompanha a peculiar e natural arquitetura do resto da casa, contendo apenas uma cama de solteiro, colchão e nada mais.
Velas e lamparinas resolvem o problema da escuridão durante a noite. Livros, papel, caneta e uma máquina de datilografar ajudam a passar o tempo.
Ainda na sala, há espaço suficiente para encostar a bicicleta de mountain bike e colocar todos os equipamentos de natação e corrida no canto. Tudo isso sem afetar o charme que a mesa de madeira oferece.
No entorno da casa, existe um lago perfeito para nadar. Existem ainda várias trilhas para corrida e ciclismo em mountain bike. Asfalto, nem pensar!
O verde das árvores é acinzentado e distorcido pela chuva fina que cai sem parar. Pássaros são constantemente interrompidos por cigarras, que não têm hora para cantar. O silêncio, característico do local, tranquiliza até a mais inquieta das mentes, porém anestesia o corpo e a vontade de quem deseja voltar a treinar.
Pedro estava muito cansado pela viagem de avião, pelas horas no aeroporto e pela prova também! Apenas se jogou na cama como uma árvore que cai envelhecida em sua morte natural, e apagou em um sono profundo.
O dia amanheceu e ele nem percebeu. Uma pena, pois pretendia ver o nascer do sol e nadar o mais cedo possível. A chuva cinzenta era incessante. Um peso absurdo, muito além dos quilos a mais pós-prova, mantinha seu corpo na cama.
Foi até à mesa da sala e lá estavam frutas e outros itens para o café da manhã. Já passava das dez horas. “Preciso nadar” ele pensou.
Sentou-se então na varanda da casa, sentindo a madeira úmida e fria tocando as pernas. Enrolado em um cobertor, observou o lago por alguns minutos. Estava frio, muito frio! Logo foi desencorajado a nadar.
Passou o resto da manhã alí sentado, enrolado e aquecido. As horas pareciam não passar, o silêncio era quebrado pelo barulho da chuva e algumas boas recordações da prova, que causavam raros sorrisos em seu rosto.
Um pedaço de pão, bolo e café serviram de refeição. O relógio já apontava quase quinze horas. Ele não estava exatamente com fome, queria apenas satisfazer alguns desejos reprimidos pelos dias de treino e pelo controle de peso.
Os dias seguintes se passaram e por mais que tentasse, não conseguia sair da Casa Escura. Sequer conseguia atravessar a varanda. A chuva fina intermitente, o vento gelado das manhãs, a lama etc.. Tudo pesava mais que o normal.
Alguns dias depois, encorajado pela trégua da chuva, Pedro colocou o tênis e saiu para correr. Trinta sofridos minutos bastaram para perceber que os efeitos da Casa já estavam além do cansaço. Pedro já se sentia destreinado. Tentou lembrar há quantos dias estava ali. Em vão! O céu cinzento não difere o dia da noite.
Logo após o almoço, resolveu cair no lago. A tortura que seria tocar na água gelada foi superada por um pulo de cabeça! Começou nadando um pouco desorientado, mas sentindo-se cada vez melhor a cada braçada. Lembranças de um corpo bem treinado começaram a alimentar os músculos. As braçadas eram cada vez mais vigorosas!
Por um momento de desatenção, um dos dedos bateu na “raia”, causando enorme dor. Ao atingir a borda, pegou impulso e resolver marcar o tempo em cem metros. A visibilidade submersa era cada vez maior, a água cada vez mais leve e mais limpa!
Cem metros depois, ele parou e respirou profundamente. Sentindo-se vivo de novo, olhou no relógio para conferir o bom tempo. A água limpa da piscina do clube, somada ao reflexo do sol, cegava os olhos. O calor ardia na pele e a respiração já recuperada pedia uma nova série de 100m.
Pedro saiu da piscina, sentou em uma das várias cadeiras de sol. Tentou, em vão, entender porque sempre retornava à Casa.
Alguns chamam de depressão pós-Ironman. Outros de desequilíbrio hormonal pelo esforço. Há quem explique que se trata de um trauma, causado pela dor e sofrimento da prova, uma espécie de defesa psicológica para que o corpo e a mente não passem por aquilo de novo. Tantos outros preferem entender que isso é a falta de novas metas, de novos desafios.
Eu sei, em determinado nível, o que representa para mim. O Pedro ainda não sabe! Não sei se todos sentem ou se são capazes de perceber. Uma grande maioria não admitiria! Talvez nem eu admita ou sinta! Talvez o Pedro nunca venha a compreender. Quem sabe tudo não seja apenas obra de ficção, como as viagens ao passado e as batalhas medievais de outros textos?
Só sei que já ouvi histórias a respeito da casa. Já reconheci comportamentos indicativos em terceiros. Alguns que sequer participaram de provas, apenas por terem treinado muito além do que deveriam, acabaram visitando a casa. Muitos jamais conseguiram sair de lá.
A casa tem várias formas… uma aparência para cada um. Mas é sombria, escura e está sempre pronta para receber o próximo visitante.